sábado, 11 de dezembro de 2010

NOS MEUS TEMPOS DO COLÉGIO - A Sala de Estudo

Era uma sala ampla, vazia de sons e de movimento, em manhãs frias, de invernos amodorrados nas pedras húmidas e escorregadias, cinzentas também na bruma de uma neblina escura a descortinar uma porta aberta de par em par, com um lance de escadas em granito, silencioso, que conduzia ao tempo do estudo, do tirar dúvidas, de explicar, repetir, insistir e prestar atenção. Era ao lado da secretaria, do senhor Antoninho, que, enquanto o professor não chegasse, ia cortando o silêncio de um bsbsbs, com um olhar tranquilo e calmo de um rosto afável, emoldurado pela serenidade dos cabelos brancos, que olhava placidamente, aqueles jovens, alguns ainda a lembrar o calor das lareiras ou o ninho dos cobertores de papa, ainda não arrefecidos, de rapazes e raparigas, alguns, nem todos, que se levantavam de madrugada, de geadas e vendavais “para ser alguém na vida”. E aconchegados às carteiras de madeira, naturalmente, ali se aguardava, a chegada do professor em que as coisas precisavam de ser bem aferidas, e, inevitavelmente, para quem a vida se limitava ao concreto e imediato de uma terra dura de trabalhar mas fácil de conhecer e de gostar, os cálculos da matemática, por mais que o Dr. Ramiro se esforçasse, não eram facilmente apetecidos. Mas vamos ao plano da acção, que é do que vos quero falar. Pois bem, eu só fui à sala de estudo uma vez ou duas; nunca fui muito dada a madrugadas, mas ainda me lembro bem, a porta aberta, e o Director do colégio, era o primeiro a chegar; era, portanto a primeira aula; e ele aí vinha, ágil e rápido, «acertar contas com a Matemática», para o quadro, e de nariz bem levantado, nas pontas dos pés, de mãos fechadas, inclinadas para trás, a barafustar, indignado, num vozeirão tonitroante, quão imensa era a sua sabedoria e competência, «Tu não tens vergonha de ainda não saber isto?», e de mãos abertas, levantadas, «ó minha rica menina, tu não te assustes; não é contigo que eu estou a berrar»;e aí a varinha “mágica”, tentava desfazer escolhos e abrolhos de cabeças ainda adormecidas para a dureza da vida. Que me perdoe o Dr. Ramiro, de cuja imagem apenas me ficaram marcas de generosidade, bondade e uma mente aberta, esclarecida; mas estou em crer que aquela varinha apenas vislumbrava eliminar algum granulozito de pó que pudesse acumular-se nas costas de algum casaco mal escovado e, por isso, afoito às traças. Lá dizia o ditado, «numa mão o pão, noutra a educação», agora não diz, mas o resultado está à vista. Mas passemos ao personagem seguinte, e tinha que ser, pois claro, o Padre Ribeiro, uma figura por demais carismática: generoso de costas e braços, não muito menos na altura, entrava assim de lado, por entre as portas de então, estreitas, embora altas, e vinha sempre apressado, metido numa gabardine azul escura, por baixo um casaco, bem agasalhado, que o inverno em Moncorvo até fazia suar as telhas dos telhados, de cristais a pingar, abrir a boca para respirar, o frio intenso era como facas a cortar, e o orvalho no jardim verde de relva farta, eram rendilhados, de um branco imaculado, gelado a intimidar os “passeantes”, voluntários ou obrigados; mas voltemos ao Padre Ribeiro, também, claro, acompanhado da varinha, que era rápida e certeira; aqui já eu estava muito à vontade, mas ele imprimia uma dinâmica à aula cheia de entusiasmo, quem não se lembra de enunciar os verbos todos, de Francês? Até os papagueávamos! e sabíamo-los todos, e do caderninho de significados, e da estratégia de, os melhores, formarem equipas, escolhendo os restantes elementos para se disputarem os verbos, o vocabulário e a gramática, como se chamava aquele jogo, alguém se lembra? Era uma competição saudável, mas alcançando, assim, uma interacção viva e constante a que ninguém, mesmo os mais apáticos, conseguia escapar. E lá estava a varinha… Depois vinha a D. Maria Pêra, minha professora de Português; eu estava logo à frente, sendo das mais novas e também dos alunos mais pequenos, assim como a Margarida Gouveia, que morava numa rua muito próximo do jardim, eu ocupava a primeira carteira e, como tal, mesmo à mão de semear; e apesar de, com a familiaridade que era peculiar a todos os professores, ela gostar de perguntar, já não sei a quem, pelas botas de polimento, lembram-se? eu não achava grande piada àquela mania que ela tinha de sacudir o pó com a mão, que vos digo que, certa vez, estive na iminência de a sentir, e era tão leve em movimento, quão pesada no cair, a mão, claro. Contudo, a ninguém deixou danos demolidores, aquela mania de preservar os casacos do pó e das traças da vida. Ainda que não fosse muito longo o meu tempo de colégio, dele guardo gratas recordações e agora mesmo perpassa na minha mente o tempo do intervalo: a aula acabava e, mal passávamos a porta da sala, abríamos a saquinha de guardanapo e toca a mastigar o pão com a marmelada, caseirinha, evidentemente, e, o mais provável era ter sido feita à lareira, em avantajada caldeira de cobre e bem batida, sem varinha mágica, mas com a velha e artesanal colher de pau, herança de família, a maior parte das vezes, a rodar, em círculo fechado, na magia das tardes breves de um anoitecer precoce de melancolia rotineira porém saudosa, de casas cheias de gente, de respostas e de certezas; mas estávamos no intervalo, descíamos uns degraus e o espaço enchia-se de alegria e divertimento; animadamente conversávamos e brincávamos de acordo com a idade ou a natureza de cada uma, jogava-se a macaca, trocávamos postais e bilhetinhos, escondidos em cadernos, sebentas ou compêndios e cartas, cromos dos ídolos do nosso mundo pequeno das nossas fantasias; passeávamos sonhos e devaneios, trocávamos confidências amistosas na simplicidade das nossas vidas; penso que o recreio, nas traseiras do colégio, era só de meninas, separado, portanto, do dos rapazes. Eram momentos de sã camaradagem e, logo no primeiro dia em que cheguei, fui surpreendida com o jogo do peixinho, além de outros, como o do lencinho. Terminadas as aulas, que decorriam sobretudo, de manhã, dirigíamo-nos para casa e era uma alegria ver aquela rua, torrente de mocidade, viva de sonhos e de entusiasmos, rua de velhas e sólidas paredes, cheia de jovens, conversando, rindo e brincando, sempre alegres, galhofeiros, e muito francos, irmãos na confraternização e na brincadeira, descendo, uma rua de comércio, de vai e vem de movimentada gente das aldeias circunvizinhas e da vila, cumprindo tarefas iguais, desde aviar um recadinho, fazer umas compras, até visitar os amigos, para não deixar esquecer os mimos da aldeia, sempre na memória de todos.

Arinda Andrés

1 comentário:

Júlia Ribeiro disse...

As velhas salas de estudo !...
O certo é que se aprendia . Havia professores excelentes. Outros nem tanto . Como em todas as situações na vida.
Mas a lembrança ficou e bem gravada , não é Arinda?

Abração
Júlia