sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Coitada da moleirinha!

Toda a noite a moleirinha peneirou, peneirou,
e mesmo antes de subir a serra, cansada,
e ofegante, a moleirinha errante
a farinha despejou e em neve se tornou,
branca e fria, leve, leve e fininha,
feita de lágrimas da linda moleirinha;
e tanto, tanto chorou! e tanto, tanto soluçou,
que em lindo orvalho se moldou,
vasto e imenso, imerso em frio denso,
e toda a noite em cristal se ficou,
o choro manso e humilde da linda moleirinha.

Toda a noite a moleirinha
peneirou, peneirou
toda a gente assim dizia,
esta noite é que nevou, é que nevou!
e era um tal espanto, uma tal maravilha!
deixando a terra, toda, assim toda branquinha!
que até mesmo parecia, finos e requintados,
sublimes e aprimorados, lindos! lindos,
e esmerados, finos rendilhados
da mais preciosa e trabalhada joalharia!
e mesmo, mesmo a sufocar, sem mais aguentar
começou a polvilhar sacos e sacos de farinha,
e todas as casas, árvores, ruas e telhados,
assim mesmo caiados, de tanta brancura
mostrar, parece que a moleirinha, de neve andou a pintar,
em brios de mil louvores, vidros esculpidos
em mil rigores, polidos de mil favores,
árvores lavradas de branco vestidas,
estátuas, de mármores, antigas!
Toda a noite a moleirinha
peneirou, peneirou
toda gente assim dizia,
esta noite é que nevou, é que nevou!
e o sol, até para brincar, lá no cimo, a brilhar
e para se acreditar, começou de a acariciar
e mesmo de leve, mesmo de levezinho
lhe tocou a ciciar, e escutando, de mansinho,
se sente o sussurrar ali naquele ribeirinho,
onde o sol, de envergonhado, se ficou, escondidinho
e era tanta a paz na terra, uma paz celestial,
no meio de tal brancura, no meio de tal beleza,
a formosura da neve era a maior riqueza!
sem diferença, tudo igual, a moleirinha
pintou , de neve, que maravilha!
a terra toda e a paz divinal
Toda a noite a moleirinha
peneirou, peneirou
toda a gente assim dizia,
esta noite é que nevou, é que nevou!
e um coelhito ousado, de focinho afiado,
em pêlo eriçado, as orelhas espetadas,
indiferente ao caçador, na neve deixa sulcado
qual arado de lavrador, semente de ingenuidade,
coragem e liberdade e meio estonteado,
sem medo da pontaria, procura um breve calor
na calmaria da neve, branca e leve de uma tarde fria.
Toda a noite a moleirinha
peneirou, peneirou
toda a gente assim dizia,
esta noite é que nevou é que nevou!
e mesmo no silêncio da calmaria no ar
se escuta, se sente, e se pressente,
se adivinha, o respirar da linda moleirinha
que toda a noite peneirou, peneirou
e de neve, branca e fininha, pura, imaculada
no silêncio de uma noite abafada
em frio cortante, gelo afiado a terra redondinha pintou
em brios de mil louvores, jóias de mil lavores,
esculpidos e polidos, árvores de branco lavradas,
vestidas de estátuas, de mármores, antigas,
de neve, branca e fininha, pura, imaculada!
Toda a noite a moleirinha
peneirou, peneirou
toda a gente assim dizia,
esta noite é que nevou, é que nevou!,
e o luar de prata , devagar, devagarinho,
já a meio do caminho, desce a serra de mansinho
em afagos de magia, sonhos de melodia,
da lua redonda e nua, etéreos, brancos,
fios prateados, de azul marchetados, tece ,
e na rua gelada e fria, suave calmaria,
de paz, é iguaria, assim se insinua na alma
mais dura, e a paz na terra, divina,
amanhece, branca e pura, imaculada aparece.
Toda a a noite a moleirinha peneirou, peneirou
e tão cansada ficou, que a farinha soltou
ali pela serra acima e tanto, tanto soluçou
a noite inteira chorou, que em neve branca e fina
se tornou. Coitada da moleirinha…..!
e era um tal espanto, uma tal maravilha,
deixando a terra assim, toda branquinha
que até mesmo parecia, finos e requintados,
sublimes e aprimorados, lindos, lindos
e requintados da mais preciosa e trabalhada joalharia
e o sol mediu em mil rigores, em mil favores
depois, em mil lavores, poliu e esculpiu
árvores lavradas de branco vestidas
em brilhos de mil vidrilhos,
estátuas, de mármores, antigas;
Toda a noite a moleirinha
peneirou, peneirou
toda a gente assim dizia,
Esta noite é que nevou, é que nevou
Para todos,
que o natal vos acache em muitas e muitas cachinhas de bênçãos!
boas festas!!

Arinda Andrés

vossemecê tem uma cara igualzinha, igualzinha!...

O Serafim ficou sem mãe ao nascer, e o pai, o Armando Cholim, pastor há muitos anos na Casa Grande, não era homem para abandonar as ovelhas e deixar o patrão. Habituado a calcorrear os montes, meses a fio sem descer ao povoado, não ia habituar-se a outra vida. Criado com uma tia, o rapaz, dada a escassez de recursos e terminada a escola, era necessário dar-lhe um rumo para se poder desenrascar e, querido como era de todos, ninguém se poupava a esforços para opinar sobre o destino do garoto; já que a sorte não o tinha bafejado, que ao menos, agora, a criança tivesse uma vida mais limpinha e bonita do que aqueles que tinham ficado ali, entre os torrões e as silvas de uma terra dura de cultivar, que fazia dos seus, escravos, e sujeitos ao trabalho de noite a noite. «P´ra ele estava bem era sapateiro, como o ti João Quim, ou alfaiate, o rapaz tem cabeça, lá isso tem». E foi assim, entre mimos e carinhos de uns e de outros, como caule fino e frágil, mas sempre direitinho, que foi crescendo, não pensando, nem lhe passava pela cabeça, um dia, ter que deixar a rua e os vizinhos, onde tudo lhe era tão familiar, naquela cabeça de cabelos encaracolados, ruços, como os anjos o tinham pintado, nem mesmo se esquecendo de lhe pôr uns olhos tão cheios de sonhos e de amor como macia era a cor do mar, que o Serafim sabia, de cor e salteado, o nome de todos os cães, e, se alguma galinha ou peru, mais cabeça no ar, se extraviava, ele saberia, de imediato, do seu paradeiro: «Olhe, a sua pita, andava agora na terlavila (atrás da vila), quer que la vá lá botar para baixo?». E da sua boca pura, infantil, nunca se ouviu qualquer palavrinha que não fosse dita e ouvida como um bem, tal era a generosidade e alegria que sempre manifestara; leve como um pardal, ao passar por esta ou aquela porta, havia sempre de dizer com inteira prontidão: «Quer que le vá a um recado?»; e ia mesmo, ia num pé e vinha noutro, tão ligeiramente e tão eficientemente, que ninguém ousaria questionar sobre qualquer solução apresentada, e rapidamente, pois o garoto, a despeito de muitas e muitas ausências e carências em que cresceu, nunca lhe faltou a resposta, pronta e rápida com que premiava quem o interpelasse. E no tempo em que as searas, soberanamente e desdenhosamente se ostentavam em exuberantes caules de seiva madura, pronta a cortar para sustento dos animais, era ver o Serafim, cheio de gaitas, que dava a quem lhas pedisse, emitindo belos trinados, de fazer inveja a qualquer pardal, que se arvorasse o título do mais sublime gorjeio; natural e harmoniosamente, como se, já nas mãos, trouxesse também a harmonia gorjeante e o timbre dos sons, metendo as rudes gaitas nos beiços de querubim, encantava quem o ouvisse, «parece um melro…que bem! nem um canário, o raparigo!»
Estávamos em 1952, a água transbordava nos chafarizes de Santo Apolinário e do Couço, e em fiozinhos esperançosos, corria suavemente, ora sumindo-se aqui, encolhendo-se ali, ou demorando-se, ténue e intermitente, no contorno de algum seixinho, antes de chegar às hortas vizinhas; as oliveiras vergavam-se ao peso das azeitonas e as amêndoas, de um aveludado macio e tenro, em casca dura, áspera e castanha se amontoavam, depois de secas em casa, ou na rua para se entregarem ao malhadoiro certeiro. E na luz fina e macia de um Outono doirado, suave e sereno, divinamente colorido, os rapazes, de calções e suspensórios, cruzavam as ruas, de arco na mão, ligeiramente inclinados e de olhar embevecido no passar dos sonhos, perdido na inocência de uma infância pacata e acomodada ao aconchego constante e seguro da casa e da família. O sol refulgia no cinzento azulado das pedras de xisto e redobrava-se em promessas nos vidros das janelas.
Mas o tempo passou e com ele o Serafim partiu, numa manhã fria e de vento agreste, para Lisboa. Os pardais alinharam-se nos beirais das casas, e tristemente, esconderam o bico sob as asas, descaídas de pesar. A gente ficou muda de tristeza, rematando num encolher de ombros conformista, por palavras, que nada dizem: «É a vida …». Mais um filho da terra, que partia à aventura. Trabalhava numa pequena mercearia, onde as pessoas faziam, sempre, as mesmas coisas; era um novelo, a desfazer-se em vontades, nas mãos do patrão e dos clientes e nunca ninguém reparou no Serafim. Encaixado lá no alto, num quartinho exíguo e mal arejado, a criança, com um olhar profundo, enternecidamente saudoso e magoado, via o vai e vem frenético das pessoas e lembrava a beleza da sua terra, o nascer do sol, mesmo ali, por cima da serra…, a apanha da azeitona, a quebra da amêndoa… mãos nodosas de trabalho ou ágeis de juventude, cheias de grão, a cair no alqueire, como pétalas a abrir em sonhos e ilusões, e histórias dos antigos, a encurtar o serão de tempos bem diferentes…, o cheiro do pão e dos bolos da festa, os jogos com os rapazes na praça… e nas meninas dos olhos do Serafim, os amigos passavam, à volta das eiras, de arco na mão, à luz de um Outono soalheiro e luminoso…As saudades apertavam-lhe a garganta, escureciam-lhe o olhar, antes, aberto e limpo, agora, escondido entre sobrancelhas, tensas e pesadas de melancolia e de receios; na cabeça, as lembranças derretiam-lhe a alma, e diluíam-se em apegos dos sentidos à sua terrinha natal, em acordes de melodias, que ecoavam em gargalhadas felizes, enamoradas, das raparigas, sobrepondo-se ao martelar dos malhadoiros, ao escachar das amêndoas e ao cair sonoro do grão, no açafate velhinho, de noites e noites, a encher-se de ilusões e de esperanças; depois, à meia-noite, qual revoada de pássaros a festejar baptizado, bandos de mocidade animada, em grupos de realejo e concertina, cantavam ao despique, enquanto os pares rodopiavam, ao som do coração, no terreiro; ele bem se lembrava, e que saudades..! andava cabisbaixo e amofinado, apesar de não querer dar-se por vencido. Mas acreditava sempre que as coisas haviam de mudar. Sentado num banquinho de jardim, sozinho, as lágrimas vieram confortá-lo de tantos desencontros que a vida lhe trouxera; os olhos embaciados, nem descortinavam a presença do polícia que, vendo a criança chorar tão tristemente, tão amargamente e tão doridamente, veio aproximar-se daquele rosto de menino ou de anjo, devia ser, com as lágrimas a escorrer pela cara abaixo. O dia rompera numa manhã doce, clara e sossegada, envolvida num manto de céu azul! O Serafim, de punhos da camisa devidamente esticados, olhou, de olhos bem abertos, soluçou profundamente, engoliu as lágrimas de um só trago e, limpando o nariz avermelhado de tanta emoção à manga do casaco que a madrinha lhe tinha dado para ir trabalhar para Lisboa, disse prontamente com um olhar límpido, tranquilo, e decididamente: «Vossemecê tem a cara igualzinha, …igualzinha… a um homem da minha terra, que é muito meu amigo!». E ainda a soluçar, engolindo o pão duro, amaciado com as lágrimas da tristeza: «O senhor é igualzinho, igualzinho a ele!». O agente de autoridade, já esquecido da autoridade, das leis e de todos os códigos de identificação, estendeu a mão, generosa, segura e protectora, ao menino frágil, indefeso e desprotegido, mas forte de sentimentos, e caminharam rumo ao lar. Os pássaros, todos! debaixo de um céu azul, divinamente azul, em gorjeios celestiais, cantaram hinos de alegria! A luz do sol brilhou intensamente, com uma luz quente de gratidão e inocência, alegremente! E veio meter-se com os caracóis de um menino que partiu sozinho para a grande cidade. O Serafim, num abrir e fechar de olhos, atirou-lhe uma piscadela, e as meias, a estoirar de curiosidade, e ávidas de cuidados maternais, espreitaram ainda mais, por baixo das calças, a deixar ver os tornozelos finos, de criança; mais direito ainda, para si e para os outros, nas voltas da vida, esticou bem aprumadamente o pescoço, e apertou a mão do amigo. Naquela noite, o Serafim entrou numa casa cheia de flores, a desabrochar em muitas e muitas primaveras e, apesar do seu tamanho, sentiu-se gente grande!

Arinda Andrés