sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

NOS MEUS TEMPOS DE COLÉGIO

 Com uma negativa a Desenho, era urgente corrigir a minha falta de jeito, habilidade ou trabalho; fosse o que fosse, tinha que se remediar; e para tal problema não havia melhor solução do que entregar -me à responsabilidade de pessoa bem indicada para semelhante função: o Dr. Leite. E não haja dúvida de que se tratou o mal pela raiz, pelo que consegui obter uma excelente nota no meu exame de 2º ano. E ainda hoje me lembro bem e de que maneira, da estratégia usada, para além da persistência e do trabalho, aquando das nossas imperfeições ou incorrecções ou ausência de destreza manual. Primava pela ironia mordaz, incisiva, mas de tal modo marcante e pertinente, perdoem-me a redundância, que nem aos mais indiferentes ouvidos, ela deixaria de atingir e ficar bem registada na nossa memória; é por isso, de certeza, e eu que até era um pouco, vamos lá, distraída, concentrava-me no meu trabalho, que, ainda que fosse mais ou menos tímida, como quase todas da minha idade, eu era das mais novas, não deixava de achar uma graça enorme, esboçando o «politicamente correcto», sorriso e toca de fazer tudo muito bem feitinho, se não passaria eu, também, para a berlinda. Mas então vamos lá ao cenário, para depois se passar ao acontecimento: nós tínhamos aulas numa sala a seguir à sala de estudo, talvez virada para o recreio; em frente à porta estava o quadro, e, neste espaço, nada exíguo, o Dr. Leite, já a dobrar um pouco as costas, ao sabor da idade, conservando, sempre uma inteligente irreverência, uma figura já respeitável, pelo cargo, pela sua irrepreensível apresentação, sóbria, simples mas distinta, pela sua formação e sabedoria, vestindo um sobretudo preto, a contrastar com a raridade de cabelos brancos, deixando realçar já uma generosa calvície, e se ele agora aqui estivesse, corrigir-me-ia com o humor mais assertivo e sarcástico, mas sempre, sempre, incrivelmente jocoso, e diria, careca! alegremente, ou, num relance de pensamento de duas ou três quadras, mesmo a jeito de retratar o caricato do que quer que fosse ,na sua boa disposição que, quando necessário, alternava com o rigor preciso e necessário; mas sempre activo e nunca dado à melancólica apatia , passeava de cá para lá, sempre de vara na mão, brandindo-a a acompanhar o ritmo do seu discurso, ou o cómico dos seus reparos, e dizia ele , quando as rectas não eram tão perfeitas quanto ele o exigia, e , de certeza que ninguém esqueceu estas imagens , marcantes, inofensivas, acompanhadas de alguma hilaridade, mas de algum modo, não deixando de ser carinhoso, mas embaraçoso para aquele a quem o compasso não acompanhava o rigor preciso e exigido, e era desta maneira que a ninguém ficou indiferente: «mas fizeste aí uma recta tão perfeita que nem o rabiço do Felgar!!», outras vezes, quando as malfadadas elipses não correspondiam ao que ele exigia, «essas encomendaste-as no Larinho; quase desenhaste aí uma albarda! e trouxeste-a logo hoje de manhã!», ou ainda, «vais ter que nos dizer onde há esses púcaros assim tão originais… isso só lá na tua terra…» Claro que ninguém queria ser exposto a esta graça, inofensiva mas que, de certo modo, individualizava; e todos tínhamos que ser os melhores; era uma crítica pertinente. Como excelente professor as notas dele, no exame final, eram, igualmente e sempre, as melhores; dotado de rigor e exigência mas amenizados por um humor fino e acutilante, as suas aulas pautavam pela serenidade de um trabalho dinâmico, interagindo uns com os outros, ordeiramente, mas sempre com o objectivo de alcançar o excelente. Bons tempos!!Bons tempos em que as circunferências, as elipses ou as rectas que não o eram tão imaculadas quanto o necessário , procuravam , já naquele tempo, preservar a ruralidade, o ambiente natural; ou reconhecer o mérito de uma interioridade agora votada ao esquecimento, ao abandono?...

Arinda Andrés

1 comentário:

Anónimo disse...

Que texto tão bem escrito! Só que não tenho presente a colega que o fez. Donde é? Em que ano frequentou o colégio.
Abraço fraterno da conceição